Uma noite como hóspedes dos Hmong

Em Hà Giang o nosso objetivo maior era conhecer as comunidades rurais tradicionais vietnamitas, embora tenhamos nos inserido no dia-a-dia da população local, parando em plantações e falando com as pessoas, queríamos ter a chance de dormir numa dessas casa tradicionais, como convidados de uma família. 

Ficamos pirados com as histórias de duas mulheres que conhecemos na estrada, nos contando sobre a experiência de passar toda uma tarde com essa família local que elas conheceram nos arredores de Sa Pa, e ainda serem convidada para passar a noite! A simplicidade e humildade de todo um povo, a total falha na comunicação, sempre resolvida com muitos sorrisos e gargalhadas, o fogo no chão da sala… agente precisava ver isso, mas não sabíamos como fazer acontecer…

Em Sa Pa, logo que o ônibus chega você sente o quanto a cidade precisa do turismo para sobreviver. Muitas mulheres Hmong vestidas tradicionalmente te seguem pelas ruas oferecendo "homestay", hospedagem na casa delas. Elas falam bem inglês e oferecem pacotes atrativos, com direito a trekking, teto, e 2 refeições por 30 dólares por dia para 2 pessoas; mas depois de termos encontrado famílias no Norte que sequer falavam vietnamita, achamos que ficar hóspedes na casa de uma Hmong que falava inglês quase perfeito e nos serviria banana pancakes no café da manhã não seria exatamente o que estávamos buscando.. Foi aí que decidimos fazer o caminho oposto dos outros viajantes… 

De uma coisa eu estava certa! Eu finalmente encontraria mais das tradicionais roupas feitas à mão pelas Hmong dessas vilas. Feitas com fibras de maconha, as saias tradicionais são super coloridas e alguns bordados podem demorar anos para serem concluídos. Eu tinha ficado encantada com elas já em Hanói, quando as vi numa loja por 30 dólares! Quando descobri que vinham de Sa Pa, logo pensei: - É lá mesmo que vou buscar a minha, e não vou pagar tão caro!!! De fato, em Sa Pa há um mercado enorme ao lado da estação rodoviária, que abre todos os dias, e vende roupas e acessórios locais, produzidos e vendidos pelas diversas etnias da região.

Como nosso ônibus para o Laos saía perto da estação, e tínhamos apenas 2 dias em Sa Pa, deixamos as compras para o último dia, alugamos uma moto e saímos buscando conhecer mais sobre as minorias étnicas  da região e tentando encontrar os tais misteriosos campos de maconha.

Depois de dormir uma noite na cidade engolida pela neblina, alugamos uma motoca e seguimos em direção  a vila Hmong de Ta Van, onde as meninas nos disseram que encontraríamos vários "homestay". Sa Pa e seus arredores são incrivelmente mais turísticos que as lindas vilazinhas que havíamos encontrado em Hà Giang.

Ta Van fica na baixada de um vale que dá acesso a uma longa montanha. Talvez tivéssemos altas expectativas mas no pouco tempo em que ficamos ali, continuamos com aquela sensação de ser tudo feito “pra inglês ver”. Cafés, wifi, locais nos parando a todo tempo tentando nos convencer a comprar alguma coisa ou algum serviço… tudo muito bonito, mas “artificial”.

Comprei uma presilha de cabelo de uma Hmong, puxei conversa e tentei perguntar onde ficavam os tais campos das famosas plantas usadas para fazer as roupas deles. Ela mencionou um tal de “sumiti”, que nós entendemos erroneamente “summit” (cume), e assumimos que no topo dessa longa montanha iríamos poder encontrar as tais plantações..

Seguimos viagem subindo ladeira acima em direção ao topo da montanha. Logo a estrada de cimento acabou e se transformou em terra e pedregulho. E lá se foram 1, 2, 3 horas de subida de motoca... A estrada era tão desnivelada e difícil que em diversas situações eu tinha que descer da garupa para o Mú manobrar. Atravessamos as nuvens, passamos por cima delas, embaixo delas. Deixamos elas nos engolirem várias vezes... Estava tão prazeroso que tínhamos certeza de que o dia ia acabar bem... Só não sabíamos como, já que eram quase 4 da tarde e o sol já estava para se pôr e além de um pacote de biscoito, uma blusa e uma garrafa d'água a gente não tinha mais nada..

No meio do caminho encontrávamos algumas pessoas trabalhando em roças isoladas sob a neblina, e motoqueiros locais, com motos ultra carregadas de lenha e vários passageiros espremidos no mesmo banco. Eles guiavam rápido e com uma precisão impressionante, nos saudavam tímidos e desconfiados. Depois de muitas descidas da moto chegamos ao topo da montanha e começamos a descer em direção ao vale do outro lado, e nada de encontrar os campos de maconha! 

Paramos inúmeras vezes na estrada para perguntar se haviam casas mais acima na montanha (na base da mímica) e continuamos subindo por entre a neblina no sinal de que de alguma maneira misteriosa estavamos a caminho de algo bacana, mas que nem sabíamos o que era...

Passamos pelo ponto mais alto da estrada, vencendo as nuvens densas do topo da montanha e pegamos uma interminável descida, em direção ao fundo do vale vizinho, na estrada igualmente esburacada. Quase caímos da moto algumas vezes, e finalmente chegamos à beira de um lago lindíssimo, rodeado de pinheiros, - a “Shangrilá vietnamita“, segundo o Mu. Foi aí que "aprendemos" que "sumiti" na verdade não significava "cume" em inglês, e sim Seo My Ty, o nome da remota vila que acabávamos de encontrar. A confusão toda aconteceu porque a vila "Seo My Ty" não aparece no Google Maps, no Maps.me, ou em qualquer GPS! 😂

O incrível vale de Seo My Ty

O incrível vale de Seo My Ty

A vista era ridícula de linda e o Mú só repetia "- Shangri-la! Shangri-la! Esta é a Shangri-la dos caras!". Paramos na porta de uma grande casa de madeira, a única casa na verdade, onde uma jovem mulher cortava lenha de maneira muito precisa. Uma senhorinha Hmong a observava e ao mesmo tempo sorria pra gente, um sorriso tão genuíno quanto banguela.

Tentamos nos comunicar com elas, até tentei usar o machado e cortar a lenha - sem sucesso - mas elas sequer falavam vietnamita. Podíamos ver o dia acabando e tínhamos que agir rápido ou acabaríamos dormindo à céu aberto.

Peguei as minhas calcinhas úmidas que havia estendido no sol para secar enquanto aproveitamos da companhia das mulheres na beira do lago, montei na garupa da moto e continuamos seguindo em frente mais um pouco, já que voltar no barranco de pedregulho aquela hora do dia não daria certo... Ali, ninguém mais falava Vietnamita, quiçá inglês. Sem Internet ou sinal de celular, o negócio era a gente se virar com mímica e fazer acontecer, e quanto antes chegássemos em algum lugar onde pudéssemos passar a noite, melhor!

Passamos algumas outras casas e perguntávamos por teto (fazendo um triângulo YMCA em cima da cabeça), e dormir (juntando as mãos do lado da bochecha com os olhos fechados)... As respostas eram mistas. Alguns indicavam que continuassemos seguindo estrada adiante, outros que voltassemos de volta a TaVan...

Agora, contando e relembrando, vejo como botamos empenho para que tudo isso acontecesse e o quanto queríamos encarar uma noite como hóspedes na casa de uma família local. A cada casa que parávamos e nos mandavam de volta ao caminho de Ta Van, seguimos adiante. Assumimos que o pior que poderia acontecer, era ter que dormir na beira do lago, com todas as nossas roupas de frio, abraçados olhando as estrelas... e por isso continuamos indo adiante…

Mais entrada e incerteza. Paramos um casal em uma moto para pedir informação,  A mulher Hmong na garupa (depois de algum tempo você aprende a reconhecer as etnias da região baseado nas cores do chapéus e estilo das roupas que eles usam) disse que nos ajudaría; era só segui-los. A estrada era muito ruim e não conseguíamos manter o passo do casal e logo os perdemos de vista, ainda mais no meio do nada do que antes. A galera local guia aquelas motocas como se não houvesse amanhã... Talvez não seja ruim que a estrada seja péssima porque se eles tivessem boas pistas se matariam com muito mais frequência...

Começou a ficar um clima meio tenso porque, por mais que a gente romantize tudo o tempo todo, dormir ao relento não é a melhor opção, especialmente em um lugar tão  frio e úmido. Tínhamos muito que tentar arrumar um lugar para dormir porque não dá pra pedir pra pernoitar na casa de ninguém chegando no escuro, já havíamos descoberto isso…

Seguimos a desolada estrada e logo encontramos uma casa grande de madeira, a única no horizonte. Haviam várias crianças do lado de fora e resolvemos parar ali. O pai das crianças e uma senhora Hmong bem velhinha apareceram na porta. Fiz novamente o teatro das mímicas perguntando sob acomodação, tentando explicar que estava ficando escuro.O pai nos fez o sinal que todas as outras pessoas fizeram, para voltar para Ta Van, mas a senhorinha interveio e nos convidou para entrar! Em 2 minutos estavam as filhas e os genros a nossa volta,  e sem discussão alguma todos acataram as vontades da matriarca. Impressionante ver o respeito e a maneira como tudo aconteceu.

Entramos na casa e de cara ganhamos 2 chapéus bordados com motivos Hmong da nossa protetora, a Dao (pronúncia “Dzao”). Fomos escoltados durante o final da tarde toda. Com umas 2 duas horas que estamos ali o Mú já estava entrosado com a criançada, tirando foto e brincando de bexiga com os meninos. Eu estive o tempo todo na companhia da matriarca, que até altas horas teve o bebê mais novo da família pendurado à suas costas. Como eles não entendiam vietnamita, inglês e sequer português 😂 resolvi falar em português mesmo enquanto caprichava na mímica tentando me comunicar. A matriarca repetia todas as minhas palavras, com pronúncia em português quase impecável, sempre com um sorriso no rosto.

A noite passou a cair. Tirei um bloco de notas da bolsa e comecei a perguntar as idades de todos. Pelo menos os números são universais e dá muito para usá-los para nos comunicar. A matriarca tinha 70, a mãe das crianças 28, e os seus 5 filhos tinham entre 12 e 1 ano de idade.

Logo o pai pegou as crianças todas e saiu de moto pela estrada. 5 numa moto é pouco...

Enquanto isso eles tentavam fazer uma ligação com um telefone celular que tinha péssima recepção, e pediam para que eu falasse com a pessoa do outro lado da linha. Eu só ouvia "what do you need?", "what do you need?" (“o que vocês precisam?”), enquanto eu respondia "just a place to sleep!" (“apenas um lugar para dormir!”). "Can we stay here until the sunrise?" (“podemos ficar aqui até o sol nascer?”), a voz do outro lado disse que sim e continuava perguntando o que precisávamos… Depois de vários cortes na ligação, descobrimos que ela perguntava por comida...

Passamos o telefone de volta para uma das mulheres da casa e logo começou uma movimentação. A criança saiu das costas da avó e foi para as costas da mãe, que chegava com um maço de espinafre cortado da horta da família. A mãe mostrava orgulhosa o tanto de espinafre que ela trazia de fora.

Logo o pai voltou. O Mú reconheceu a marca da cerveja local mostrando pela sacolinha transparente no rótulo da latinha. A prima de 14 anos veio cortar batatas com uma peixeira que eu nunca saberia manusear. O pai sai de novo e volta com a mãe, ambos haviam trocado de roupa e traziam duas galinhas cacarejando.

Logo elas estavam mortas, ali mesmo. A crianças nascem assistindo o ritual e o senso de normalidade é mantido. Eu fico louca e começo a filmar. Entro em transe, em parafuso! Afinal, já havia presenciado essas cenas quando pequena na casa dos tios de família sitiante, mas nunca mais na minha vida adulta, havia entrado na casa de alguém que mantém uma fogueira no meio da casa e que me serviu 2 galinhas vivas para virar jantar...

Como ser humano, você entende o significado de oferecer o que se tem de melhor para o seu convidado. De dar mais do que pode. De compartilhar do melhor com os seus convidados.

Sabíamos que eles não tinham banquetes como aqueles todos os dias. Sabíamos também que não haviam camas extras na casa. Aliás, era na fogueira que nascia do chão de terra do meio da sala que tudo acontecia! A fogueira é o ponto central, de lá eles esquentam a casa, cozinham, se aquecem e sentam para bater papo e passar a noite. 

Não tem como descrever cada detalhe com precisão. O ritual de morte das galinhas. O corte no pescoço o escoamento do sangue feito em círculos dentro de uma tigela. O corte final do pescoço. O escaldamento e depenamento dos bichos, feito na pia de chão da cozinha, e sempre de cócoras. As crianças tomando banho de gato e se preparando pra dormir naquele mesmo lugar minutos mais tarde... As toalhinhas molhadas esfregada nos rostinhos dos pequenos, nas mesma pia de chão de cimento onde se mata a galinha, também se lava os pés das crianças num balde d'água quentinho antes do sono. O celular de um deles que tocava músicas infantis Hmong no meio da noite. O vinho de arroz conservado na garrafona pet, e os vários brindes nos oferecidos durante o jantar. Os chinelos de plástico emprestados, meio remendados para que pudéssemos também tirar as nossas botas e respirar os nossos dedinhos. O céu estrelado que vimos lá fora. A beleza do sorriso da mãe tão jovem e tão forte. O orgulho que senti de ser mulher. O carinho que senti por todos! A gratidão que vai sempre comigo onde eu for.

O pai das crianças tinha várias videos Hmong no telefone, que ele usava para entreter a mulecada durante a noite. Fizemos algumas pesquisas e aparentemente muitos Hmongs que hoje vivem nas cidades acabaram produzindo tais videos como forma de promover e manter a língua e a cultura Hmong. Com muita paciência o Mu conseguiu encontrar alguns no Youtube :-)

 

Questionamentos

Não pude deixar de notar o fato de as crianças não terem partilhado do jantar - estaríamos nós tirando deles? Provavelmente. E a cama? Quem teve que se espremer para nos dar uma cama super quentinha com colchão feito de palha trançada?

Foi uma experiência única. As cabeças de galinha servidas no jantar, os famosos pé de galinha, muito apreciados por lá... o gostinho de gengibre no arroz. O Zua (pai) nos ensinado a comer com a cumbuca bem próxima da boca... a hospitalidade, o carinho e cuidado que eles tiveram com pessoas que eles nunca tinham visto antes, o Mú ser chamado de Irmão pelo pai das crianças! Gente que a princípio parece tão diferente, mas que logo percebemos ser tão igual a gente...

Prometemos um dia voltar! Tenho certeza que eles ainda estarão lá. Desde a nossa partida da Casa de Dona Raqué no Vale do Pati na Bahía, a quase 10 anos, que eu não me sentia assim... extasiada e nostálgica mesmo antes de partir.

Mesmo sabendo que não deveríamos ter deixado dinheiro - é considerado falta de educação - deixamos uma capa de chuva para moto que havia custado por volta de US$ 5, e mais US$18.00 escondidos no bolso da capa. Compramos uma bermuda da tia, e uma bolsa da matriarca. Fizemos o que pudemos para retribuir de alguma maneira por algo que nunca dinheiro algum pagará.

 

Qualquer descrição, são fragmentos de memórias que nunca serão tão ricos quanto a experiência que vivemos lá.

Eterna gratidão à: Su (mãe), Zua (pai), Dao (vó), as crianças e agregados...

 

Quem são os Hmong? 

O povo da etnia Hmong é um povo originário da região do Rio Amarelo, na China, a mais de 2000 anos. Evidências vindas do DNA mitocondrial dos Hmong-Mien defendem que sua origem vai além de 2000 anos...  Em 2011, foi comprovado que o grupo Hmong-Mien e o grupo Mon-Khmer são provenientes de linhagem genética de 15 a 18 mil anos atrás!!! Os conflitos entre os Miao do sul da China e os Han recém chegados e conflitos armados imposto pela Dinastia Qing entre os séculos XVIII e XIX provocaram a saída de muitos Hmongs fugidos para o Sudeste Asiático, como este grupo do Norte do Vietnam. O povo Hmong foi então submetido a abusos e morte em massa. Categorizados como bárbaros ou selvagens pela Dinastia Qing, os Hmong eram frequentemente, humilhados, escravizados e oprimidos…

Das inúmeras guerras da Indochina que marcaram o século XX, em 2004 muitos Hmong migraram para os USA. Existe muito material produzido por Hmongs, para Hmongs, na internet e muita informação disponível para quem mais quiser aprender mais sobre essa cultura riquíssima milenar. 

Quando fiz mestrado em Antropologia Social na Goldsmiths em Londres, li um livro fantástico chamado "The spirit catches you, and you fall down" da Anne Fadiman, que li em inglês, mas com tradução para muitas outras línguas, e é um livro que vale a pena ser lido diversas vezes. Foi este livro que nos levou até os Hmong no Vietnam. E foi daí que muitas histórias inesquecíveis foram vividas…

Do irmão que o Mú fez.

 De memórias para nunca serem esquecidas...

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Um dia voltaremos! Prometemos a eles e a nós mesmos...