Depois de quase uma semana em Hanoi, conhecendo a cidade e seus arredores, e nos livrando de uma gripe brava que se arrastava desde a China, é hora de pegar um ônibus e explorar o Norte do Vietnam, mas pra chegar lá, ainda tem muita estrada ruim!
12/01/2016 - Em algum lugar entre Hanoi e Ha Giang
Eu estou usando as mesmas roupas de ontem, que também eram as mesmas de anteontem e provavelmente serão as mesmas de amanhã. Maravilhoso e abençoado dry fit, se não está fedido, está limpo! Em Hanói, a chuva prossegue ininterruptamente, às vezes forte, outras tão fina que parece um vapor d'água. A lama e a umidade são tamanhas que me recuso a usar tênis porque quando eles finalmente molharem, não irão mais secar, então fico adiando ao máximo e aproveito para arejar os pés.
Chinelo é bom, mas respinga a lamaceira suja das ruas no traseiro e nas pernas. Meu objetivo é alcançar um estado em que consigamos comprar cerveja de arroz sem ter que irmos até o bar mais longe do centro (a cerveja local é tão barata que os bares centrais dão as desculpas mais esfarrapadas do mundo para não vendê-la aos "gringos"), ou que finalmente os locais se convençam a nos vender uma refeição pelo preço justo, mas acho que ainda estou longe disso…
Chegamos na rodoviária animados por finalmente deixar a cidade, e em grande estilo, ônibus local, com gente "de verdade". Ao entrar, o motorista nos fez tirar os chinelos e sapatos enlameados, que são colocados dentro de um saco plástico, porque o corredor é na verdade uma longa e fina almofada, onde todos pisam descalços para chegar aos “assentos”, que são caminhas rasas, empilhadas como beliches, e colocados nas laterais e no meio do ônibus. As caminhas são reclináveis e à frente fica uma pequena mesinha com uma cestinha plástica, onde pode-se colocar alguns pertences. Cobertores - muito limpos e cheirosos por sinal - são disponibilizados para os passageiros, porque o ar condicionado fica no máximo.
O ônibus estava cheio e nós éramos os únicos "de fora", recebidos com olhares curiosos e sorrisos amarelos. Alguns bebês rastejavam livremente nos corredores, com pais alheios as chacoalhadas e freadas bruscas que o motorista praticava regularmente. Nem nocautearmos um motoqueiro pra fora da estrada, e frearmos tão bruscamente que o ônibus derrapou e ficou de lado na estrada, quase rolando barranco abaixo, foi suficiente para convencer os passageiros a colocar o cinto de segurança ou segurar os bebês que ainda estavam soltos pelo ônibus. Fazer o coração de um vietnamita acelerar exige muito mais do que isso.
A businada é constante, e vem sempre casada, um código morse disparado toda e qualquer vez que algo aparece à frente, ou durante as frequentes ultrapassagens cegas e duvidosas que o motorista faz sem pestanejar, entregando nosso destino às mãos da divina providência. O rádio tocou uma versão eletrônica de algum hit vietnamita durante boa parte da viagem, o que até combinou com a buzina incessante.
A chuva também nunca deu trégua, e a pista molhada de nada serviu para diminuir nossa velocidade. Passamos por estradas em todos os tipos de condição e terreno, com gente indo e voltando de todos os sentidos e direções, em todas as faixas. Carros, motos, bicicletas, carroças, animais, e pedestres, coabitando de forma mágica. Como um formigueiro, onde ao espectador é impossível ver ordem no caos, aqui o trânsito é sempre caótico, seja na cidade, na roça ou na estrada, mas de alguma forma essa loucura dá um ritmo particular ao tráfego, e todos se entendem.
Cortamos por córregos barrentos, e casas e vilas que já viram dias melhores, perdidos na umidade e imensidão de plantações de arroz e banana, até finalmente pararmos 20 minutos em um "restaurante" à beira da estrada. Sob olhares atentos, nos sentamos para comer ao lado dos outros fregueses. O bandejão com arroz, uma porção de verdura, carne e um caldinho de limão custa "pra eles” $20 dong, pra nós sai por $40, e quem pode reclamar?
O banheiro das mulheres foi algo à parte. Quando Vivi entrou, havia uma fila de bundas virada pra entrada porque todas se agacham juntas, lado a lado, de cara pra parede, e fazem xixi em uma longa plataforma de cimento que escorre para o ralo. Simplicidade em seu melhor!
Talvez os anos de viagem e depois todas as roubadas pelas montanhas tenham me deixado meio insensível à essas coisas. , se não for ameaça de vida, pouco me incomodo e na verdade, até aproveito. Fome, frio, calor, sede, sujeira, são estados transientes que apenas realçam as cores e melhor permitem aproveitar os opostos que lhes sucedem.
Depois da fumaceira e da grosseria chinesa, a rara rudeza vietnamita me soa doce, a fumaça daqui pouco me afeta, e o único barulho e agito que me incomoda vem dos “brancos” como eu, que teimam em encher a cara nas ruas do Old Quarter, dando pouca importância ao que os cerca, exigindo mil e um truques dos vietnamitas que vivem do comércio no bairro mais turístico de Hanoi para convencer um ocidental a se sentar no seu barzinho para comer, ou comprar uma fruta ou um doce da sua cesta, e conseguir uns poucos centavos de dólar ao final do dia.
Aqui todo "branco" se acha cool porque estar no Vietnam soa como algo "exótico", mas não se percebe o quão comum e banal todos nós somos aos olhos dos donos do lugar, que são pouco capazes ou interessados em nos individualizar, ou nos separar da massa de gringos pseudo hippies com suas mochilas e roupas coloridas, andando de transfer em transfer, de passeio em passeio, rasgando por selfies e paisagens de beleza indescritível, sem pouco relacionar e aprender com as pessoas locais que dão a graça ao lugar.
Uma humildade sorridente e colorida, que nos lembrou ao mesmo tempo a Bolívia, a Bahia, o Paquistão; e também lugar nenhum. O Vietnam não é para o vietnamita. Apreciar isso tudo, de maneira crua, em toda a sua complexidade e aspereza talvez até exija, como disse a Vivi, um tipo diferente de espírito e interpretação… Ou talvez seja como o café, que comecei a beber aqui, um paladar a ser desenvolvido, mas que com o tempo abre uma nova coleção de cheiros, sabores e vivências.
Seja lá o que for, adoramos cada minuto.